Diários de Havana (13) – Orelves

 

Orelves

 

 

                        Assim como o truco em Beagá, dominó em Brasília e porrinha no Rio, o jogo de xadrez, em Cuba, é do povo (ah, é como a Praça Castro Alves, em Salvador). No terminal de ônibus da Rua São Lázaro, todo enfumaçado, entre engraxates, vendedores de livros usados e de refresco com sanduba de presunto/soja, ficam lá uns caras jogando, sentados nuns caixotes. Um deles, a cara do protagonista de Cidade de Deus (o Zé Pequeno), detonava até quem tava assistindo. Jogava muito. E rápido. Quando parei pra ver, tava liquidando um colega, numa final em que o adversário argumentou que tinha se enganado numa jogada lá pelo meio de jogo. Ele: “se enganou, nada. Olha aqui”. Foi voltando com as peças todas pro lugar e perguntou: “aqui? Eu venho com este peão pra cá, meto meu cavalo aqui atrás dele e acabou seu jogo”. O outro saiu balançando a cabeça, duvidando, mas todo mundo sabendo que ele não teria tido qualquer chance contra o “Zé Pequeno”. Fiquei por ali olhando, como quem não quer nada. Parou um caixeiro-viajante, com uma pasta, todo arrumadinho. Ganhou desse também, numa final bastante disputada. O caixeirinho era bom (será que o chefe dele sabia que ele tava ali?) e pediu revanche. Não devia ter feito isso, melhor ter ido embora. Em poucos lances ficou com o jogo bloqueado de tal forma que, na sua vez de jogar ficou um tempão olhando pro tabuleiro, como não acreditando. Muito sem graça, se desculpou dizendo que tinha de trabalhar (na verdade, vai ver que tinha mesmo, mas só foi descobrir depois de levar um zugswang) e foi embora. “Zé Pequeno” ficou ali olhando em volta, orgulhoso. Realmente, era o rei do pedaço.

Isso foi na minha primeira semana. Daí, passei mais de quinze dias tentando descobrir onde se jogava oficialmente xadrez em Cuba. Vitória, pouco chegada ao jogo, não sabia de nada. O cacho dela, Romélio, apesar de aficionado – empatamos uma partida, ambos com muito rum na cabeça – também não ajudou muito. Informou que havia uma Escuela Nacional de Ajedrez, funcionando na Universidade de Havana, que ninguém, nem Vitória, que dava aula lá (e, acredito, nem mesmo o Reitor), sabia onde estaria instalada. Procurei a lista telefônica inteira e não consegui localizar a tal Escuela. Depois de perguntar pra Deus e o povo, consegui, enfim, saber onde ficava o Clube de Xadrez (Clube, viu, Romélio, Clube!). Ficava em Víbora, a duas quadras da casa de Vitória. Pode?

Mas foi boa a demora. Não é que liguei exatamente no dia que estava começando o torneio final que decidiria o representante da Província de Havana nas finais do campeonato cubano? E, segundo Martinez, com quem falei e era um dos coordenadores, dali sairia o provável campeão cubano. Liguei às dez da manhã, o negócio começava às duas e às onze e meia eu já estava lá sapeando. Com minha Sony digital a tiracolo.

Lugar meio cavernoso. Ficava numa espécie de subsolo, em área cheia de prédio velho, e o do clube não era exceção. Mas o Martinez foi superlegal. Era um afro-chinês de estatura média, magro, assim meio subnutridão, que veio me apresentando as pessoas que chegavam. Primeiro as mulheres, umas meninas com jeito de colegial, “esta aqui é a campeã juvenil cubana”, “aquela ali é a vice-campeã da província na categoria adulto. Mas tem muito futuro, tem só quinze anos. Um jogo agressivo, se inspira no Tao…” Chegou uma negra gordinha com bobes e uma touca transparente na cabeça. Tratava a garota com grande deferência, como a uma diva do jazz. Depois veio pra perto de mim e disse “é Mestra Internacional; ganhou o último torneio da América Central y Caribe”. Respeitei também. Os competidores vinham chegando. Saí pra ver se comia alguma coisa.

Voltei. Muita gente assistindo e os caras lá, compenetrados, cada um com seu ritual. Cumprimentavam-se, sem muita efusão, com respeito. Alguns bem jovens, 17, 19 anos. Outros mais velhos, 50, 60. E todas as faixas intermediárias. Achei que predominava a faixa 25 a 35 anos. Tudo bem arrumadinho e os emparceiramentos já feitos. As mesas estavam meio cambetas e os tabuleiros – na verdade, placas de plástico quadriculado – bem baleados; aliás, como o restante das instalações. Mas os relógios eram modernos, e os jogadores, Classe A.

Chegou Orelves. Tranquilo. Em cima da hora. Seu adversário, com as brancas, já estava nervoso. Ele, nem aí. Martinez nos apresentou. Disse que eu era do Rio de Janeiro e estava tirando umas fotos para uma reportagem no Brasil sobre o xadrez cubano. Ao lado dele um branquinho que interferia o tempo todo na conversa. Parecia uma tiete de Orelves. Perguntei ao divo quem achava que ganharia o torneio. Respondeu, descuidadamente: “sou o favorito, não?” “Mas tem alguém aí que pode dar trabalho?”. Olhou em volta e demorou para apontar um cara gordinho, precocemente careca: aquele ali pode pegar um segundo lugar… e um garotão magro, alto, com aspecto jovial: esse também é grande enxadrista. Mas, pelo jeito, penso que achava mesmo é que do tope dele não tinha ninguém ali não.

Sentou-se ao tabuleiro no último minuto. Colocou na mesa um livro com capa colorida. Acerquei-me para ver o título: Denken wie ein Grossmeister, de Alexander Kotow. O autor é soviético, mas o livro escrito em alemão. Todo em alemão! Será que Orelves falava alemão? Porra, bem preparado o cara. Bom, por isso era o favorito, não? Fez os movimentos iniciais de abertura e, enquanto o outro matutava, com as mãos espalmadas no queixo, levantou-se e veio conversar comigo, me oferecendo alguns livros de xadrez, não encontráveis no mercado. Interessei-me por Mi Sistema (My System), de Nimzovitch, que ando procurando há muito tempo e não encontro em lugar algum. Ofereceu-me também dois livros sobre a vida de Capablanca, que recusei, dizendo que já tenho vários. Perguntou-me se não queria mais alguma coisa, charutos, por exemplo. Disse que tinha um tio que trabalhava na Partagás e retirava de lá uma caixa de Esplêndidos por semana… etc. (sempre o mesmo papo, pelo visto, metade da população cubana trabalha nessa fábrica e a outra metade era parente). Falei que já tinha charutos demais, que precisava agora era de certificados de compra, para passar com eles na Alfândega. Ele prontificou-se imediatamente a me arranjar charutos com alguns certificados extras, e chamou seu parceiro para explicar o que vendera e o que, ao sair dali, deveriam providenciar. Perguntei quanto era cada livro. Ele disse que só vendia os livros juntos e deu um preço meio salgado. Regateei um pouco e fiquei de voltar ali no dia seguinte. Voltou ao jogo. Dei uma circulada, olhei como iam seus presuntivos herdeiros e vi que confirmavam-se os prognósticos.

Os relógios foram chegando a termo. O adversário de Orelves, abandonatário, olhava desolado para seu tabuleiro devastado. Orelves cumprimentou-o sem entusiasmo. Afinal, assim como o sol se levanta todos os dias, como o socialismo triunfará, com certeza, no final dos tempos, não fizera mais do que sua obrigação: ganhara. Admirei o cara. Era bão mesmo.

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